A lei municipal 6090/10 é simples: contendo apenas dois artigos, declara a Jurema Sagrada como Patrimônio Imaterial do Município de Natal. Em uma análise rápida, se entende como uma lei com o intuito de preservar a cultura de nossa cidade. No entanto, o que se entende por “Patrimônio Imaterial” e por “Jurema Sagrada”?
Segundo a UNESCO, define-se como Patrimônio Imaterial ou Intangível "as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural". Ou seja, trata-se das nossas heranças que não podem ser tocadas, mas que se encontra no imaginário das pessoas e influencia nos seus valores, manifestações, costumes e crenças.
A Jurema Sagrada trata-se de uma tradição religiosa, predominantemente nordestina, de culto a planta que leva o mesmo nome. Árvore muito espinhenta e típica da Caatinga, a jurema era considerada, pelos índios que habitavam o nordeste brasileiro, como uma planta mágica devido às suas propriedades medicinais e sobrenaturais. Presente nos rituais desses ameríndios, os diferentes usos da jurema foram transferidos às religiões populares, principalmente as de origem afro-ameríndias, após o início da colonização portuguesa.
Porém, algumas variações do uso da jurema, especificamente o consumo do chá ou do vinho da planta, proporcionam alterações na mente humana de efeito alucinógeno. Esses efeitos se devem pela presença de um alcalóide chamado DMT (N,N – dimetiltriptamina), que se enquadra no grupo das substâncias modificadoras do Sistema Nervoso Central. A atuação desse alcalóide no organismo humano ainda não é totalmente evidenciada, mas existem pesquisas, inclusive algumas sendo desenvolvidas em no estado do Rio Grande do Norte, para elucidar esses efeitos.
A jurema pode ser classificada como uma droga, visto que ela contém substâncias químicas que alteram os mecanismos de neurotransmissão cerebral de forma direta. Porém, utilizando-se o mesmo conceito também se enquadram o álcool, o tabaco, o café e até o chocolate.
Assim, ao sancionar a referida lei e declara algo como "Patrimônio Cultural Imaterial", sem qualquer ressalva, entende-se que o governo apóia toda a magnitude de tradição e costumes relacionados à Jurema Sagrada. E quando se considera "costumes" pode-se incluir o ato de consumir a bebida da jurema, se assim o fazem. Eis que se revela o ponto de discussão: quem pode e sob quais circunstâncias deveria ser administrada a bebida da Jurema?
A jurema tem um papel importante na expressão cultural do povo nordestino, pois os saberes e costumes relacionados a essa planta antecede, e muito, à época que se iniciou a colonização do Brasil. Todavia, mesmo que essa expressão tenha tal valor inestimável, ainda cabe regulação por parte do governo quando se trata do consumo da bebida, devendo ser definido os grupos de riscos (p. ex. pessoas sob efeito de outras drogas lícitas ou ilícitas, que apresentem qualquer tipo de transtorno psicótico, sob efeito de medicação controlada etc.), as condições restritas de uso (nesse caso, com fins religiosos) e a proibição de qualquer tipo de comercialização.
Alguns podem considerar essa lei, sob essa óptica, um absurdo, mas no início deste ano o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) liberou o uso da ayahuasca, chá alucinógeno proveniente da região amazônica, para fins religiosos. Porém, antes da publicação da resolução que regulamentaria seu uso, houve a preocupação por parte do CONAD de elaborar um estudo, a partir de um grupo multidisciplinar, para avaliar os diferentes aspectos relacionados ao consumo do chá. Isso permitiu um entendimento mais abrangente da questão e, conseqüentemente, o estabelecimento de instrumentos mitigadores e/ou regulatórios, tais como a elaboração de uma “carta de princípios”, a definição dos grupos de riscos, a responsabilidade das seitas sobre tais conhecimentos, do cadastramento dos grupos religiosos etc.
Leis com o intuito de apoiar a cultura local, como foi o propósito da lei 6090/10, devem existir para que se mantenha a riqueza, tão pouco explorada, das expressões culturais que existem em nosso estado. Porém, isso não pode servir de justificativa para descuidos como os aqui expostos. Observa-se, por fim, que a lei foi simplória para um assunto tão complexo, mostrando a necessidade de estudos mais aprofundados e, claro, de maior prudência por parte dos proponentes da referida lei.
Bruno de Macêdo (Biólogo)
Ora, plantar a Jurema é tão simples. Tão simples quanto a lei.
ResponderExcluirSemana passada (ou retrasada; não lembro mais) eu estava justamente pesquisando sobre a ayahuasca. Agora não sei nem mais o porquê; pois coisas pouco importantes para nossos contextos nós esquecemos fácil.
ResponderExcluirEu tinha descoberto que se faz um chá dessa planta, apelidado de chá do Santo Daime - do Santo Daime, "uma manifestação religiosa surgida em plena região amazônica nas primeiras décadas do século XX" (Fonte: Wikipédia).
Mais informações nessas pesquisas:
- Google ayahuasca chá
- Google Vídeos ayahuasca chá
- Google Santo Daime
- Google Vídeos Santo Daime
As restrições ao uso do chá devem ser feitas por cada pessoa que se dispôe a tomar, ora.
ResponderExcluirNão cabe a uma lei dizer quem pode ou não tomar ayahuasca, no máximo estipular uma idade mínima.
"Cada pessoa tem o direito inalienável de f*der com a própria vida do jeito que bem entender."
By vc sabe quem.
Monique.
A Jurema é a base do culto de mesmo nome, vulgo Catimbó, sincretismo quilombola entre cultura indígena e africana.
ResponderExcluirA Jurema Sagrada é a base do culto de mesmo nome, resultado do sincretismo quilombola entre cultura indígena e africana, vulgarmente conhecido como Catimbó.
ResponderExcluirEstive entrevistando alguns juremeiros, visto que tenho parentes antigos que participaram desse culto a muito tempo atrás, e o consumo do líquido preparado com a casca dessa árvore deve ser muito cauteloso. Segundo os líderes juremeiros, um iniciante não pode beber da Jurema logo no início, tem que ter toda uma preparação pois o poder entorpecente, chamado por eles de espiritual, é fortíssimo, e o uso exagerado pode prejudicar órgãos como rins.
É importante preservar uma cultura ligada aos nativos potiguares, e nordestinos no geral, principalmente para combater preconceitos nocivos oriundos de uma sociedade cristã mal informada. Mas cautela é essencial sobre algumas substâncias. Lembremos do caso do cartunista Glauco e o Santo Daime, foi vítima de um drogado que misturou cocaína e ayahuasca.
Complementando, meu interesse sobre essa manifestação deve-se ao meu tataravô materno que é representado em alguns terreiros de Catimbó através da estátua de "Mestre Carlos".
Concordo com o Thiago Lopes, visto que a regulação do chá não tem intuito de restringir a religião, mas uma forma de dar segurança na livre dissiminação e culto da mesma. Assim, torna-se uma forma de preservar a cultutra e acabar com os possíveis (lê-se "existentes") preconceitos praticados por outros religiosos desinformados, irredutíveis etc.
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